Fernando Miranda
Para Marina Ernst, interlocutora
Não é raro afirmar que no Brasil a
diferença entre público e privado é mínima, às vezes inexistente, que os
interesses estão sempre voltados para si, que o coletivo é abandonado e que
falta ao país um projeto. O debate em torno disso parece ocioso, mais ou menos
da ordem do debate se o sol deve ou não continuar no centro do sistema que, não
por acaso, chamamos de solar. Que essas máximas toquem a verdade brasileira,
parece fora de disputa. Ocorre: se quer isso? Não se quer isso? Ao se optar por
uma das alternativas, é preciso passar a uma ação que, mais óbvio que a
obviedade, não pode ser oposta ao que se optou, isto é: se não se quer um país
para poucos que disponham do poder, então é preciso pensar projetos para todos,
o que nada tem – ou não deveria ter – a ver com a ideia totalitarista de que
todos devam viver sob uma única ideia. Chega-se a hora de reconhecer a
diferença entre tensão e binarismo.
O Brasil não é apenas uma nação jovem,
ele, provavelmente, não é uma nação. Um país, sem dúvida, com seus inúmeros
textos e regras e leis que funcionam ora no exagero da legalidade ora na sua
total ausência – isso vai de acordo com quem diz o que e quando e para quem. O
Brasil é, no seu paradoxo, um país empírico (devo a expressão a um amigo), cuja
empiria se estabelece no excesso de normas, o que nos engana a ver algum tipo
de teoria.
Mas não posso tratar dessas coisas
num texto informal e curto, ou melhor, poderia tratar delas informalmente, mas
deveria me alongar. Sem fugir demais do problema, me atenho ao título do texto,
e ensaio a resposta, começando do modo que nos ensinaram nas escolas
fundamentais, ou seja, tomando a pergunta e a desenvolvendo, para não nos
perdermos: Uma cidade pertence a ninguém, pois é de todos que nela vivem e
transitam.
Acabei, e já imagino o susto, de
dizer uma obviedade. Mas o Brasil, esse país de retóricas inflamadas, gosta do
complexo, para dispensar o simples e óbvio. Porque se a cidade pertence a
ninguém, não é possível uma campanha, como ocorre no Rio de Janeiro, de que “a
cidade é nossa”. Melhoro: a campanha se atribui a um partido e a seu candidato,
e esse “nossa” se opõe a “deles”. Não é estranho, no Rio de Janeiro, imaginar
que esse “deles” se atribui a quem está no poder, atualmente, com todos os
mandos e desmandos de uma cidade que serve a tudo, menos a todos. Se ela passar
a ser “nossa”, então servirá a nós, menos a “eles”?
Diga-se mais: se uma cidade não
pertence a ninguém, porque é de todos que nela vivem e transitam, então como
isso pode de fato existir, ou seja, o que pode vir a ser prático nessa
afirmação? O debate em torno do transporte público, por exemplo. Ele pensa numa
melhor locomoção dos indivíduos, entendendo como melhor três coisas básicas:
conforto, tempo de deslocamento e a conexão entre os diversos pontos da cidade.
Não é preciso escrever trabalhos acadêmicos para provar que o conforto é
mínimo, quando o há, que o tempo de deslocamento é absurdo e que a rede de
conexão é, no caso do Rio de Janeiro, superior à piada – façamos boa
consideração a São Paulo, no que diz respeito a esse terceiro aspecto. (Pense o
leitor em sua cidade e pense em que tipo de cidade quer morar).
O tempo de locomoção é absurdo por
não ser real. É novamente mais óbvio que a obviedade que o deslocamento numa
cidade como Paraty ou Chapecó é menor do que no Rio de Janeiro ou em Recife. A
questão fica aguda quando se mede em quilômetros, em habitantes, em
possibilidades. Possibilidades que, logicamente, não são atribuídas apenas ao
sistema de transporte público, pois a ocupação do solo, como diria um geógrafo,
faz a diferença. Sendo mais claro: se há mais trabalhos distribuídos pela
cidade, se há mais mercados, etc, então menos pessoas sentirão vontade de se
deslocar em grandes trajetos. Gerenciar isso não é impor, nem pela via estatal,
nem pela via privada. Para isso, porém, é preciso considerar o caso de certo
município do Rio de Janeiro, em que a prefeitura mantém apenas concessão para
um supermercado (não cito nomes por óbvias razões), impedindo a chegada de
concorrentes. Aqui, já temos uma das clarezas nacionais: a falta de
capitalismo, que não impediu a chegada do anticapitalismo, esse controverso
movimento que, se é bem vindo entre jovens, deveria ser um pouco – ou um muito
– mais responsável entre adultos, sobretudo os que ocupam fileiras em lugares
do saber.
Se voltamos para o “deles” – aqueles
que detém a cidade atualmente –, vemos como a rede de conexão praticamente cria
uma fortaleza da zona sul, no Rio de Janeiro. Seria mais digno admitir a
vontade de Idade Média e construir mesmo um muro por ali – muro é o que não
falta nas cidades brasileiras, a começar pelos condomínios que se defendem da
esfera...pública. A proposta seria honesta: um muro em volta da zona sul – como
há dois túneis importantes, o trabalho já seria mais fácil – e alguns portões,
com brasão, guardas e tudo mais. Para o resto, o pessoal que agora reivindica a
cidade como “nossa”, o além muro, e a luta, para não sairmos da esteira
honesta, estaria correta: “nós” vamos tomar o que está dentro do muro e
expulsaremos “eles” de lá. Dentro do muro, as melhores condições. Fora, as
piores. À custa, sempre, de dinheiro público e com empresas privadas.
Uma cidade moderna – ou já lá vamos
na pós moderna – não se toma, como se tomava uma cidade medieval. Uma cidade se
governa para todos, gerindo as tensões, incluindo, na política interna, os
grupos externos e contrários. O lucro de uma empresa de ônibus não é o problema
de uma cidade, desde que essa empresa ofereça serviços adequados, inclusive com
políticas de preços correspondentes ao ganho da população. Sem dúvida, outras
duas obviedades que ainda se perdem em meio a debates ociosos sobre quem manda
em quem, porque é preciso que alguém mande em alguém, é preciso de todos modos
tornar-se dono da esfera pública e transformá-la naquilo que desejo e penso ser
o melhor para todos.
Dizem que o Brasil é jovem. Deve ser isso.
Fonte:http://maisdesenredos.blogspot.com.br/2016/07/a-quem-pertence-uma-cidade.html?view=flipcard
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