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Canto Poético

O POEMA E A MÁQUINA
                                                        NELSON NUNES (Piauiense)

UM HOMEM MAIS OUTRO HOMEM
NÃO FAZEM UM DESTINO.
SERÃO SEMPRE UM HOMEM E OUTRO HOMEM
A CORREREM COMO DOIS PARALELOS.

UM TRABALHA O FERRO EXTRAÍDO DA TERRA
E COM TODO FERVOR FABRICA A MÁQUINA.
O OUTRO PASTOREIA UM REBANHO DE PALAVRAS
E COMO PARA DISTRAIR ESTRELAS FAZ POEMAS.

CADA UM COM SUA LINGUAGEM
COM SUA FERRAMENTA
ENFRENTA O MUNDO
CONSTRÓI SEU SONHO.

O FERRO FUNDIDO EM PALAVRA FUNDE A VIDA.
A MÁQUINA É O POEMA DO OUTRO HOMEM.
O POETA QUER DECIFRAR A MÁQUINA
QUE QUER DEVORAR O HOMEM.



 O QUERERES  (Caetano Veloso)
 
 
Onde queres revólver sou coqueiro
E onde queres dinheiro sou paixão
Onde queres descanso sou desejo
E onde sou só desejo queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto eu sou o chão
E onde pisas o chão minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês eu não vislumbro razão
Onde queres o lobo eu sou o irmão
E onde queres cowboy eu sou chinês
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato eu sou espírito
E onde queres ternura eu sou tesão
Onde queres o livre decassílabo
E onde buscas o anjo sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução 
E onde queres bandido sou herói
Eu queria querer-te e amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock'n'roll 
Onde queres a lua eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio 
Onde queres mistério eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
e eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo-te aprender o total 
Do querer que há e do que não há em mim





Bilhete
                                         Mário Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda



Soneto da Fidelidade
                                                              Vinícius de Morais
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
.
Eu possa (me) dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.



ENVOI

                                         Mário Faustino

Vai meu canto,
Dizer a quem te escute desta dor
Severa como as coisas longevivas
Prometem ser, troféus de heróis do olvido;
Vai dizer-lhes
Da dança que dançamos, rito ardente,
E do barro fiel donde extraímos vida
Mais casta que as idéias passageiras,
Ornatos da tormenta...
E dizer-lhes do eterno,
Do rubro que ainda jaz sobre os mosaicos
Onde o dourado é morto...

Vai, meu canto,
Eu te sigo em segredo, por bizarros ouvidos:
Como um rei que mandou seu segrel para guerra
E o vê partir de longe, do alto das seteiras...



SONETO ANTIGO



Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasmas buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.




 
Vocação do Poeta
                                  Murilo Mendes.
                                             
Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano eterno.
Nasci de mil vidas sobrepostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem
Vim para amar e ser desamado
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

Vim para sofrer as influencias do tempo
E para afirmar o princípio eterno de ondevim.
Vim para distribuir inspirações às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu Criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.



AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER
                            Camões – poeta português (1524-1580)                           

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É a dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer está preso por vontade;
É servir quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor!



Cogito
(Torquato Neto)

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.



AUTOPSICOGRAFIA
                              (Fernando Pessoa)


O POETA É UM FINGIDOR
FINGE TÃO COMPLETAMENTE
QUE CHEGA A FINGIR QUE É DOR
A DOR QUE DEVERAS SENTE.
E OS QUE LÊEM O QUE ESCREVE,
NA DOR LIDA SENTE BEM,
NÃO AS DUAS QUE ELE TEVE,
MAS SÓ A QUE ELE NÃO TEM.
E ASSIM NAS CALHAS DE RODA
GIRA, A ENTRETER A RAZÃO,
ESSE COMBOIO DE CORDA
QUE SE CHAMA CORAÇÃO.



O TEMPO EXISTE
                                    Francisco Miguel de Moura


Existe um tempo que sequer sentimos,
Existe um tempo que sequer pensou-se,
Existe um tempo que o tempo não trouxe,
Existe um tempo que sequer medimos.

Existe mais: um tempo em que sorrimos,
Diferente do tempo em que chorou-se,
E um tempo neutro: nem amaro ou doce.
Tempos alheios, nem sequer são primos!

Existe um tempo pior do que ruim
E um tempo amado e um tempo de canção,
Existe um tempo de pensar que o fim.

Tempo é o que bate em nosso coração:
Um tempo acumulado em tempo-sim,
E um tempo esvaziado em tempo-não.



ANEDOTA BÚLGARA
                               Carlos Drummond

Era uma vez um czar naturalista
Que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas
E andorinhas,
Ficou muito espantado
E achou uma barbaridade.  
                     


NO ME MUEVE, MI DIOS, PARA QUERERTE...
(Anônimo. Atribuído a São Francisco Xavier)

No me mueve, mi Dios, para quererte
El cielo que me tienes prometido,
Ni me mueve el infierno tan temido   
Para dejar por eso de ofenderte.
Tú me mueves, Señor, muéveme al verte
clavado en una cruz y escarnecido;
Muéveme ver tu cuerpo tan herido;
Muéveme tus afrentas y tu muerte.
Muéveme, al fin, tu amor, y en tal manera
Que aunque no hubiera cielo, yo te amara.
No me tienes que dar por que te quiera;
Pues aunque lo que espero no esperara,
Lo mismo que te quiero te quisiera.
                                           

 


  • INDIFERENÇA
    (Em redacção).
Primeiro levaram os comunistas,
mas eu não me importei
porque não era nada comigo.
Em seguida levaram alguns operários,
mas a mim não me afectou
porque não sou operário.
Depois prenderam os sindicalistas,
mas eu não me incomodei
porque nunca fui sindicalista.
Logo a seguir chegou a vez
de alguns padres, mas como
não sou religioso, também não liguei.
Agora levaram-me a mim
e quando percebi,
já era tarde.