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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Por falta de repouso, nossa civilização caminha para a barbárie



“Por falta de repouso, nossa civilização caminha para a barbárie” – Com Eliane Brum





Nos achamos tão livres. Como donos de tablets e celulares, vamos a qualquer lugar na internet, lutamos pelas causas mesmo de países do outro lado do planeta, participamos de protestos globais e mal percebemos que criamos uma pós-submissão. Ou um tipo mais perigoso e insidioso de submissão. Temos nos esforçado livremente e com grande afinco para alcançar a meta de trabalhar 24X7. Vinte e quatro horas por sete dias da semana. Nenhum capitalista havia sonhado tanto. O chefe nos alcança em qualquer lugar, a qualquer hora. O expediente nunca mais acaba. Já não há espaço de trabalho e espaço de lazer, não há nem mesmo casa. Tudo se confunde. A internet foi usada para borrar as fronteiras também do mundo interno, que agora é um fora. Estamos sempre, de algum modo, trabalhando, fazendo networking, debatendo (ou brigando), intervindo, tentando não perder nada, principalmente a notícia ordinária. Consumimo-nos animadamente, ao ritmo de emoticons. E, assim, perdemos só a alma. E alcançamos uma façanha inédita: ser senhor e escravo ao mesmo tempo.

Como na época da aceleração os anos já não começam nem terminam, apenas se emendam, tanto quanto os meses e como os dias, a metade de 2016 chegou quando parecia que ainda era março. Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo. Pelo menos até conseguirmos nos livrar desse corpo que se tornou uma barreira. O problema é que o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu. O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é. (…)




Os autônomos são autômatos, programados para chicotear a si mesmos

Chegamos a isso: a exploração mesmo sem patrão, já que o introjetamos. Quem é o pior senhor se não aquele que mora dentro de nós? Em nome de palavras falsamente emancipatórias, como empreendedorismo, ou de eufemismos perversos como “flexibilização”, cresce o número de “autônomos”, os tais PJs (Pessoas Jurídicas), livres apenas para se matar de trabalhar. Os autônomos são autômatos, programados para chicotear a si mesmos. E mesmo os empregados se “autonomizam” porque a jornada de trabalho já não acaba. Todos trabalhadores culpados porque não conseguem produzir ainda mais, numa autoimagem partida, na qual supõem que seu desempenho só é limitado porque o corpo é um inconveniente.

Para este filósofo, a sociedade do século 21 não é mais disciplinar, como na construção de Foucault (1926-1984). Mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas “sujeitos de desempenho e de produção”. São empresários de si mesmos.

Se a sociedade disciplinar era uma sociedade de negatividade, a desregulamentação crescente vai abolindo-a. A afirmação Yes, we can, segundo Han, expressa o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de “proibição”, “mandamento” ou “lei”, entram “projeto”, “iniciativa” e “motivação”. Assim, não é um acaso que a depressão é a doença dessa época. A sociedade disciplinar é dominada pelo “não”. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, para a qual teríamos “evoluído”, ao contrário, produz depressivos e fracassados. A sociedade de desempenho, nas palavras de Han, produz infartos psíquicos. (…)



“Por falta de repouso, nossa civilização caminha para a barbárie”

A contemplação é civilizatória. E o tédio é criativo. Mas ambos foram eliminados pelo preenchimento ininterrupto do tempo humano por tarefas e estímulos simultâneos. Você executa uma tarefa e atende ao celular, responde a um WhatsApp enquanto cozinha, come assistindo à Netflix e xingando alguém no Facebook, pergunta como foi a escola do filho checando o Twitter, dirige o carro postando uma foto no Instagram, faz um trabalho enquanto manda um email sobre outro e assim por diante. Duas, três… várias tarefas ao mesmo tempo. Como se isso fosse um ganho – e não uma perda monumental, uma involução.

Voltamos ao modo selvagem. Nietzsche (1844-1900), ainda na sua época, já chamava a atenção para o fato de que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie”.

Frente à vida desnuda, aponta Han, reagimos com hiperatividade, com a histeria do trabalho e da produção. A agudização hiperativa da atividade faz com que essa se converta numa hiperpassividade. Aderimos a todo e qualquer impulso e estímulo. Em vez da liberdade, novas coerções. Só por meio da negatividade do parar interiormente, o sujeito de ação pode dimensionar todo o espaço da contingência que escapa a uma mera atividade. Vivemos, diz ele, num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios.

Assim, o que parece movimento pode ser apenas adesão e paralisia. O ativo, ou o hiperativo, talvez seja de fato um hiperpassivo. Se há um tempo só, o do acontecimento, ou se tudo é acontecimento, nada de fato acontece. Em parte, explica a sensação de que tudo é efêmero, de que o espasmo de um segundo atrás, que produziu gritos e fúrias, tornou-se distante, substituído por outro que também produz gritos e fúrias, e que um segundo adiante já não será. E logo não se sabe exatamente pelo que se grita e pelo que se enfurece, mas o imperativo é seguir gritando e se enfurecendo.

Nessa atualidade histérica, a irritação substitui a ira. Voltando às palavras de Han: “A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado. Hoje, cada vez mais, ela cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva”. (…)


Há que se escutar o mal-estar – e não calá-lo

A positividade dessa época tem, no meu modo de ver, um desdobramento nessa crise tão particular do Brasil. Temos sido instados a ser “otimistas” ou a escolher este ou aquele lado “para recuperar o otimismo”. Como se a questão se desse em torno do otimismo/pessimismo, ou como se o otimismo fosse uma qualidade moral. Essa positividade também me parece aqui ganhar uma relação com a esperança, como já escrevi neste espaço. Como se o esperançoso tivesse uma qualidade moral a mais, o que o colocaria um ou vários patamares acima de todos os outros. E como se esse momento fosse uma questão de esperança ou de resgate da esperança, para além das manipulações marqueteiras mais óbvias. Pouco importa o otimismo/pessimismo, pouco importa a esperança. O buraco é muito mais fundo.

Há que se escutar o mal-estar – e não calá-lo. Vivê-lo num processo de interrogação, vivê-lo como movimento. Carregar os limites, sem confundir ter limites com estar paralisado. Não há potência total, não há tudo é possível, não há Yes, we can. Não ter potência total não é o mesmo que ser impotente. A ilusão da potência total é que acaba levando à impotência. Há potência em dizer não – e há potência em não fazer. Como Bartleby, o personagem de Herman Melville intuiu, “prefiro não fazer” pode ser um ato de resistência e de reconexão com a própria humanidade.



“O computador é burro porque não é capaz de hesitar”

Em mais um paralelo com as crises do Brasil atual, chama a atenção a necessidade de respostas imediatas, de explicações instantâneas, de certezas. Em alguns momentos mais agudos, uma parcela da própria imprensa parece ter se esquecido de fazer perguntas. A exigência de respostas imediatas, respostas que não passem pela investigação e pela interrogação, leva à resposta nenhuma. Porque não há pergunta. Porque o pensamento está ausente, foi substituído pelo reflexo e pelo imperativo de preencher o vazio com palavras. Não há mérito na velocidade, nadas imediatos continuam sendo nadas. Ou coisa pior.

Como aponta Han, apesar de todo o seu desempenho, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade para hesitar. Se o computador conta de maneira mais rápida que o cérebro humano e acolhe uma imensidão de dados é também porque está livre de toda e qualquer alteridade. É, por excelência, uma máquina positiva. Tornar essa positividade uma qualidade a ser imitada é uma estupidez a qual temos aderido.

Há anos ouvimos tantos repetindo por aí: “Estou cansad@”. O cansaço, diz Han, é mais do menos eu. Mas a tragédia é que “o menos no eu se expressa como um mais para o mundo”. E, assim, a sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. E leva a um “infarto da alma”.

Senhor e escravo ao mesmo tempo, temos uma chance enquanto houver também um rebelde. Escutá-lo é preciso. Anestesiá-lo não é.

Trecho de Exaustos-e-correndo-e-dopados – De Eliane Brum, extraído de El País

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum


 

domingo, 24 de julho de 2016

A QUEM PERTENCE UMA CIDADE?



Fernando Miranda

Para Marina Ernst, interlocutora
            Não é raro afirmar que no Brasil a diferença entre público e privado é mínima, às vezes inexistente, que os interesses estão sempre voltados para si, que o coletivo é abandonado e que falta ao país um projeto. O debate em torno disso parece ocioso, mais ou menos da ordem do debate se o sol deve ou não continuar no centro do sistema que, não por acaso, chamamos de solar. Que essas máximas toquem a verdade brasileira, parece fora de disputa. Ocorre: se quer isso? Não se quer isso? Ao se optar por uma das alternativas, é preciso passar a uma ação que, mais óbvio que a obviedade, não pode ser oposta ao que se optou, isto é: se não se quer um país para poucos que disponham do poder, então é preciso pensar projetos para todos, o que nada tem – ou não deveria ter – a ver com a ideia totalitarista de que todos devam viver sob uma única ideia. Chega-se a hora de reconhecer a diferença entre tensão e binarismo.
            O Brasil não é apenas uma nação jovem, ele, provavelmente, não é uma nação. Um país, sem dúvida, com seus inúmeros textos e regras e leis que funcionam ora no exagero da legalidade ora na sua total ausência – isso vai de acordo com quem diz o que e quando e para quem. O Brasil é, no seu paradoxo, um país empírico (devo a expressão a um amigo), cuja empiria se estabelece no excesso de normas, o que nos engana a ver algum tipo de teoria.
            Mas não posso tratar dessas coisas num texto informal e curto, ou melhor, poderia tratar delas informalmente, mas deveria me alongar. Sem fugir demais do problema, me atenho ao título do texto, e ensaio a resposta, começando do modo que nos ensinaram nas escolas fundamentais, ou seja, tomando a pergunta e a desenvolvendo, para não nos perdermos: Uma cidade pertence a ninguém, pois é de todos que nela vivem e transitam.
            Acabei, e já imagino o susto, de dizer uma obviedade. Mas o Brasil, esse país de retóricas inflamadas, gosta do complexo, para dispensar o simples e óbvio. Porque se a cidade pertence a ninguém, não é possível uma campanha, como ocorre no Rio de Janeiro, de que “a cidade é nossa”. Melhoro: a campanha se atribui a um partido e a seu candidato, e esse “nossa” se opõe a “deles”. Não é estranho, no Rio de Janeiro, imaginar que esse “deles” se atribui a quem está no poder, atualmente, com todos os mandos e desmandos de uma cidade que serve a tudo, menos a todos. Se ela passar a ser “nossa”, então servirá a nós, menos a “eles”?
            Diga-se mais: se uma cidade não pertence a ninguém, porque é de todos que nela vivem e transitam, então como isso pode de fato existir, ou seja, o que pode vir a ser prático nessa afirmação? O debate em torno do transporte público, por exemplo. Ele pensa numa melhor locomoção dos indivíduos, entendendo como melhor três coisas básicas: conforto, tempo de deslocamento e a conexão entre os diversos pontos da cidade. Não é preciso escrever trabalhos acadêmicos para provar que o conforto é mínimo, quando o há, que o tempo de deslocamento é absurdo e que a rede de conexão é, no caso do Rio de Janeiro, superior à piada – façamos boa consideração a São Paulo, no que diz respeito a esse terceiro aspecto. (Pense o leitor em sua cidade e pense em que tipo de cidade quer morar).
            O tempo de locomoção é absurdo por não ser real. É novamente mais óbvio que a obviedade que o deslocamento numa cidade como Paraty ou Chapecó é menor do que no Rio de Janeiro ou em Recife. A questão fica aguda quando se mede em quilômetros, em habitantes, em possibilidades. Possibilidades que, logicamente, não são atribuídas apenas ao sistema de transporte público, pois a ocupação do solo, como diria um geógrafo, faz a diferença. Sendo mais claro: se há mais trabalhos distribuídos pela cidade, se há mais mercados, etc, então menos pessoas sentirão vontade de se deslocar em grandes trajetos. Gerenciar isso não é impor, nem pela via estatal, nem pela via privada. Para isso, porém, é preciso considerar o caso de certo município do Rio de Janeiro, em que a prefeitura mantém apenas concessão para um supermercado (não cito nomes por óbvias razões), impedindo a chegada de concorrentes. Aqui, já temos uma das clarezas nacionais: a falta de capitalismo, que não impediu a chegada do anticapitalismo, esse controverso movimento que, se é bem vindo entre jovens, deveria ser um pouco – ou um muito – mais responsável entre adultos, sobretudo os que ocupam fileiras em lugares do saber.
            Se voltamos para o “deles” – aqueles que detém a cidade atualmente –, vemos como a rede de conexão praticamente cria uma fortaleza da zona sul, no Rio de Janeiro. Seria mais digno admitir a vontade de Idade Média e construir mesmo um muro por ali – muro é o que não falta nas cidades brasileiras, a começar pelos condomínios que se defendem da esfera...pública. A proposta seria honesta: um muro em volta da zona sul – como há dois túneis importantes, o trabalho já seria mais fácil – e alguns portões, com brasão, guardas e tudo mais. Para o resto, o pessoal que agora reivindica a cidade como “nossa”, o além muro, e a luta, para não sairmos da esteira honesta, estaria correta: “nós” vamos tomar o que está dentro do muro e expulsaremos “eles” de lá. Dentro do muro, as melhores condições. Fora, as piores. À custa, sempre, de dinheiro público e com empresas privadas.
            Uma cidade moderna – ou já lá vamos na pós moderna – não se toma, como se tomava uma cidade medieval. Uma cidade se governa para todos, gerindo as tensões, incluindo, na política interna, os grupos externos e contrários. O lucro de uma empresa de ônibus não é o problema de uma cidade, desde que essa empresa ofereça serviços adequados, inclusive com políticas de preços correspondentes ao ganho da população. Sem dúvida, outras duas obviedades que ainda se perdem em meio a debates ociosos sobre quem manda em quem, porque é preciso que alguém mande em alguém, é preciso de todos modos tornar-se dono da esfera pública e transformá-la naquilo que desejo e penso ser o melhor para todos.

            Dizem que o Brasil é jovem. Deve ser isso. 

Fonte:http://maisdesenredos.blogspot.com.br/2016/07/a-quem-pertence-uma-cidade.html?view=flipcard

sábado, 23 de julho de 2016

SEM O NORONHA NÃO ÉRAMOS NÓS


Edmar Oliveira


O ano de 1971 foi marcante na minha vida. Eu e Durvalino Couto fomos até a casa de dona Saló entrevistar o piauiense que tinha participado do movimento que mudou a Música Popular Brasileira – a Tropicália. Nós sabíamos da importância de Torquato Neto, que estava passando férias na terra, embora Teresina não o reconhecesse. Ele topou a entrevista, desde que lesse antes de publicássemos no jornal Opinião, num encarte feito por nós dois mais o jornalista Paulo José Cunha, que nesta época estava estudando em Brasília. Paulo é primo de Torquato e facilitou a entrevista, mesmo de longe. Não tinha a internet, meus amigos. A gente se comunicava pelo correio mesmo, acreditam?
Torquato não só aprovou a entrevista como ficamos amigos e ele passou a colaborar com nossa folha cultural que se chamava, sintomaticamente, de Comunicação. Pregamos o jornal com a entrevista nas escolas para ver se os estudantes de então conheciam Torquato Neto. Um nos procurou e ficamos amigos, apenas um, Carlos Galvão. Este nos apresentou a Arnaldo Albuquerque, o gênio da raça mafrense. Logo conhecemos o Dr. Noronha – colega de Torquato Neto, médico pediatra que morava na rua Eliseu Martins, onde também tinha seu consultório.
Torquato, depois desse pequeno, mas intenso, contato voltou para o Rio. O tempo entre este encontro e o próximo e último, em 1972, ocupa na minha memória um espaço desproporcional. No quintal da casa do Noronha tinha um quarto com aparência de estúdio, onde nos deparamos com a maior coleção de LPs que jamais tínhamos visto. Uma pequena biblioteca, mas com livros indispensáveis para a nossa formação. A generosidade do Doutor – como chamávamos carinhosamente Noronha – foi demais importante para mim e creio que para os meus companheiros. Tínhamos liberdade de entrar a qualquer hora, passávamos o dia lendo e escutando discos que sequer tocavam no rádio. Ele ia trabalhar na Faculdade de Medicina e depois no consultório. Quando acabava ficávamos de papo por muito tempo. Ele deitado numa rede que atravessava o quarto e nós a sua volta sugando informações que foram por demais importantes para a nossa formação de pessoas.
Noronha não se importava com a sociedade conservadora da época que condenava sua atitude de abrigar uns hippies na sua casa. Ria dos comentários maldosos sobre sua homossexualidade. Entre nós nunca tocamos nesse assunto tabu para a época. E ri muito da última entrevista do Doutor na Revestrés: “tudo que falam de mim é verdade”. E eu tenho a certeza que sem o Noronha não éramos nós.
Torquato voltou para nosso segundo e último encontro. De longe sabíamos que agora ele estava metido com um negócio de cinema super-8 e tinha feito um filme como ator – contracenando com a Scarlet Moon – para o Ivan Cardoso. Eu, Galvão que nem o conhecia ainda, e Noronha nos preparamos para recebe-lo com uma proposta de ser ator num filme nosso. Meninos, vocês imaginam a pretensão daqueles cabeludos de então?
Noronha viabilizou uma câmara emprestada e os rolos de filmes para a aventura. Três. Com esses doze minutos contados passamos noites desenvolvendo a viabilidade de um roteiro meu. Absolutamente bobo. Arnaldo, que era fotógrafo, filmaria; Galvão dirigiria. Isso tudo combinado antes do Torquato chegar. E ele topou! Se comportou como se ele fosse o principiante e nós os bambas do cinema. “Adão & Eva – do paraíso ao consumo” foi realizado nas areias do Poty, nas ruas de Teresina, na casa do Noronha. Depois o filme se perdeu e virou uma lenda. Depois Torquato fez Terror da Vermelha, o filme definitivo que nem chegou a montar. Depois fizemos – cada um de nós – seu próprio filme. E o Doutor viabilizou a todos.
Lembro ainda que montamos o primeiro musical de Teresina - chamado de Udigrudi - com o Pedro Veras, Ana Miranda, Pierre Baiano, Gordinho, o batera Jacó entre outros. Cenografia de Arnaldo, dirigido por mim e produzido – quer dizer, viabilizado por Noronha. Esse projeto foi exitoso, se pagou e deu lucro ficando duas semanas em cartaz. Com minha parte no lucro vim ao Rio pela primeira vez.
Todas as nossas loucuras juvenis – cinema, jornais, teatro, músicas, sonhos – só foram possíveis pela generosidade do Doutor. E ele passou a fazer parte de nossa vida e – ainda bem – um dia eu disse tudo isso a ele. Agradeci e agradeço de coração.
Depois que nos separamos – o grupo conhecido por Gramma, por causa do jornal desse nome – continuei com ele em Teresina. Foi meu professor de Pediatria e depois preceptor de estágios rurais – uma espécie de Saúde da Família da época. Também teve grande influência na minha formação médica.
Depois eu também vim embora e ele ficou no Piauí, tendo sido Prefeito de Monsenhor Gil e Secretário de Educação de Governo do Estado. Sempre que eu ia a Teresina era obrigatório um nosso encontro. Sempre que ele vinha ao Rio também.
Nunca parou de ser um agitador cultural, um homem à frente do seu tempo. Quando ele ganhou um prêmio no Ministério da Cultura – gestão do Gilberto Gil – com seu documentário Balancê/Baião veio ao Rio receber o prêmio merecido e trouxe seu Zé Coelho, um octogenário sinhozinho de Monsenhor Gil, personagem principal do documentário. Lembro de três episódios. No dia que eles chegaram nós saímos para jantar. O Zé Coelho ficou no hotel porque o Noronha achou que ele estava cansado. Quando ele voltou ao hotel encontrou o velhinho na portaria do hotel ensinando uns passos de Balancê para os recepcionistas. No dia seguinte fomos mostrar o Rio para o Zé Coelho, que nunca tinha visto o mar. Dentro de uma barca na Baía de Guanabara admirava o marzão e me confidenciou que era maior do que a lagoa de Canindé. Caminhando pelo Aterro do Flamengo, admirando a paisagem e o Pão de Açúcar, voltou a falar no meu ouvido: “meu fí, num fosse pela loucura do Noronha eu tinha perdido tudo isso! ”
Há vinte dias ele escreveu numa rede social que estava com câncer de fígado. Assim de chofre, como era seu estilo. Fiquei preocupado, mas não achei que ele ia assim tão depressa. Soube de sua morte ontem. Assim, apressada como ele era. Fiquei com a impressão que ele bateu a porta da vida com uma frase que ele sempre dizia quando não estava gostando: “isso aqui tá muito chato, meu chapa. Tá muito repetido. Fui!”


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Futuro Sem Passado

O facebook me avisa que amanhã é aniversário do meu amigo Arnaldo Albuquerque, falecido em janeiro do ano passado.

Creio que dentro de alguns anos essa rede estará cheia de páginas de pessoas mortas. Verdadeiros mortos-vivos na internet.

A efemeridade da internet tem problemas a longo prazo. Talvez terei que desativar um blog que tenho há quase noves anos porque ele está desconfigurando. Parece que não aguenta a quantidade de postagens ao longo de tanto tempo. Blogs foram feitos para durar pouco.

E eu que pensava que estava guardado tudo que escrevi durante esses anos todos! Trabalho perdido.

Também acho que essas fotos "deletáveis" não terão longa vida. Estamos fazendo uma informação que se perde rapidamente.
Não se guarda os e-mails como se guardava correspondências. Não poderemos conhecer mais verdadeiras histórias de correspondências, como - por exemplo - as cartas de Freud e Lou Andreas Salomé, por exemplo.

Não existe mais as versões anteriores de uma obra literária. Os remendos eliminam a versão anterior. Não teremos mais uma história da constituição de um romance, por exemplo, ou a correção dos poemas de Torquato, tal como ele deixou.

Não sei se estou nostálgico, mas sei que tenho um medo de pensar que teremos um futuro sem passado!

Edmar Oliveira

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Todo Mundo é Negro

"Todo mundo é negro num mundo branco de chicote algoz, no laço preso tudo entre nós, a vida é livre na prisão do sol"

( trecho da letra, de Paulo Tabatinga, musicada por Ravel Rodrigues ) 


foto: Paulo Tabatinga

terça-feira, 12 de julho de 2016

Paulo Patrick ( Paulo Tabatinga )


Obstinado, Paulo Patrick
Levantou uma bandeira:
Da luta pelo preço justo
Da passagem de ônibus;
Pelo o direito de ir e vir...

Mas, sobre a ponte, foi atropelado,
Quando se manifestava ardentemente.

Menino guerreiro, na Frei Serafim
Foi até o fim, por essa bandeira!
Avante! novos guerreiros!