Foto: Paulo Tabatinga |
Ainda meninos, lembro de quando íamos pegar leite na Trisidela. Ele carregava a carga pesada e eu, lépido e fagueiro, inventava estórias pra distraí-lo. Nunca reclamou de pegar no pesado e nem nunca quis contar histórias com as quais eu o engabelava. Ele era menor, mas mais forte e saudável. Eu o raquítico que só carregava esperteza. Já moleques taludos, lembro de chegar em casa de uma farra qualquer e acordá-lo pra trancar a porta. Nunca fez queixa dessa brincadeira sem graça. Meu pai resolveu que eu ia estudar e ele carregou a loja nas costas sem dizer não ao injusto sacrifício. Mas era o preferido de mãe e isso lhe bastava.
Nem sei se conseguiu formar-se em matemática, mas ela lhe foi útil quando ingressou por concurso no Banco do Brasil. Foi trabalhar no interior do Maranhão e eu vim pro Rio de Janeiro. Perdemos o contato por uns tempos. Quando retomamos ele estava casado e veio ao Rio com a filha pequena para uma cirurgia complicada. Mais tarde voltou com um segundo filho nascido com outro problema de má formação. Um cirurgião do Maranhão aqui no Hospital Jesus consertou os dois. Alertado para não ter um terceiro filho, riu e disse que queria, enfim acertar. E acertou nos três saudáveis e adoráveis sobrinhos. E o terceiro nem precisou mais de conserto, ele sabia bem.
Pra não enfrentar uma crise no casamento, foi embora. Constituiu nova família que não o queria e que não deu certo, mas ele não sabia dizer não. Não conseguiu dizer não para os problemas que a vida lhe pedia para resolver. Não conseguiu dizer não para o que pensava resolver adiando entre a bebida e o tabaco. Da última vez que o vi – antes do hospital – tentei conversar, mas achei que falava aquelas antigas histórias que eu contava quando menino, que ele nunca ouviu direito e continuava carregando seu fardo, como se obrigação fosse – por não saber dizer não.
Eu achava que ele estava se matando, mas ele ria e colocava o polegar pra cima – como se não pudesse dizer não para o destino. Tinha uma aposentadoria boa para a velhice, mas gastava toda em bondades demasiadas por não saber dizer não.
Muito doente, os filhos o ampararam e recuperam uma relação interrompida. Ele estava alegre, contando suas histórias do passado como se nunca tivesse ido embora. Os meninos estavam muito alegres também com a volta do pai e não queriam ver que ele já estava indo embora para nunca mais voltar. No hospital refizeram um passado perdido que pareceu não mais ter sido. Foi um belo encontro definitivo, não a separação da morte.
Quando o vi, já entubado num leito de CTI, me reconheceu com os olhos e colocou o polegar pra cima para me dizer mais uma vez que estava tudo bem, mesmo que ele estivesse indo antes de mim, furando a fila por ser mais novo. Era como se me dissesse que sempre carregara o fardo e eu que continuasse contando histórias que ninguém ouvia.
Só chorei, pois parte de mim morria também. E só agora senti o peso do fardo que ele sempre carregou.
* Psiquiatra, autor e escritor.
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