O comandante da Rota de São Paulo confessou desavergonhadamente que não pode tratar morador de favela igual trata moradores do Jardins. Mais: a polícia perde o respeito se não for enérgica com favelados, mas os moradores de bairros nobres podem ficar assustados se não forem tratados com delicadeza. A política da desigualdade foi declarada oficial por um representante bastante graduado de um poder público.
Temos aqui apenas a confissão de que a nossa sociedade não aboliu a escravidão, como quis uma lei que ninguém cumpriu. Aqui fica entendida a revolta de nossas elites às leis de cotas, aos negros nas universidades, à bolsa-família, aos aeroportos ficarem parecidos a rodoviárias, ao perfume da madame usado pela empregada, ao massacre policial diário para manter os favelados no seu lugar.
Eu não sei se vocês perceberam, mas tudo isso – que por um momento diminuiu, um pouco que seja, o enorme fosso social entre a casa grande e a senzala – voltou a nossa normalidade escravagista. As universidades serão pagas para tirar os pretos e pobres de suas salas; o cartão do bolsa-família é ridicularizado e rapidamente apagado de nossa vista; nos saguões dos aeroportos não há mais chinelo de dedo com bermuda e regata viajando; os direitos das domésticas – que vinham sendo regularizados – foram ao ralo, tão desnecessários quanto o perfume que elas ousaram usar; as linhas de ônibus foram reorganizadas para que os bondes das favelas não cheguem à zona sul; a guerra às drogas é só uma desculpa para manter a favela sob controle; portanto é mais que natural que a polícia escrache os filhos dos escravos e trate com polidez o “cidadão de bem” dos Jardins.
Foi contra a ameaça de se querer apagar – ou esmaecer um pouco que fosse – a secular divisão de nossa sociedade escravocrata, que a classe média – guardiã das elites na esperança inútil de por elas ser acolhida – foi para as ruas bater panelas com a camisa da seleção. Não foi pela corrupção como a mídia tentou fazer parecer. Foi para mandar as esquerdas para Cuba. Foi por medo de que o país se tornasse bolivariano – gritou quem nem sabia a identidade do libertador – e abolisse a escravidão com que nos acostumamos desde que trouxemos escravizados amontoados nos navios negreiros para o cais do Valongo.
Ainda hoje festejamos na Praia de João Fernandes, em Búzios, a memória desse corajoso traficante de almas. Pela praia que leva seu nome fizemos um tráfico irregular – mesmo depois da abolição – sob as vistas grossas de um governo que sempre protegeu os seus malvados favoritos. João Fernandes foi um grande traficante de escravizados. João Fernandes é o verdadeiro herói dessa nação escravocrata. É ele que mantém os pretos e pobres “sob controle” nas favelas, usando a força policial do governo para, em nome de um novo tráfico, manter a escravidão. E a elite toma uísque na praia de João Fernandes, enquanto a classe média não permite que ônibus com os negros das favelas desembarquem na zona sul. Até hoje querem os negros em suas cozinhas, não na praia.
Então, parem de cobrar que os batedores de panelas voltem às ruas porque a corrupção só piorou. Não foi por ela – até foi porque alguns bolivarianos se enlamearam nas práticas privativas dos donos dessa nação. Mas não era a razão principal. As panelas gritaram porque a ordem natural de uma nação escravocrata ameaçou mudar.
As panelas calaram-se porque os donos da nação escravocrata voltaram ao berço esplêndido ao som do mar e a luz do céu profundo, enquanto o braço forte do escravizado movimenta o impávido colosso.
E eles querem que assim seja eternamente…
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foto: feita por Marc Ferrez de um navio negreiro no Brasil. O ano é 1882. A foto foi feita clandestinamente.
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