(Texto publicado na Revestrés #21 – Edição Renato Castelo Branco – 2015)

Parei no alto do barranco, olhando o rio: era a primeira vez que o via. Meu irmão me tirou do devaneio, tocando-me o braço. Canoas cheias de gente seguiam para a coroa que se formara no meio do leito, com banhistas, peladeiros e barraquinhas de palha. O Flamengo do Rio jogara na noite anterior e estava lá um atleta do time reserva, acompanhado por moças bonitas, de biquíni. Entramos no barco a motor e cheiro forte de óleo, vencemos as águas e pisamos a areia iluminada de sol.

O rio me chamava pra viver e foi uma das principais razões para eu ficar em Teresina. Ainda hoje pulsa a memória do primeiro dia e de muitos outros. Mas deixei-o. Foi quando as águas ficaram sujas demais e a cidade, sitiada. É difícil, pode causar muita dor, mas é possível que o leitor ajude a entender como a cidade ficou assim. Tarefa dura, de nada adiantarão os lugares comuns, as frases gastas e tolas, as doces lembranças.

Talvez nos socorra o rio sangrando: vermelha água pedindo espanto. Os quintais, mil sonhos e algo mais. Uma imagem na parede, mesmo sabendo como dói uma fotografia na distância amarelada do tempo. Poderia ficar mudo, mas de nada serviria, pois palavras são silêncios que transbordam. Por isso, indago: cidade ácida, por que você anda assim tão só? O asfalto a fez perder o chão? Mas, no instante em que digo cidade, ela passa por mim e não consigo pegar.

Não consigo pegar e o mundo que quero não passa na televisão. Vejo-o no outdoor, a dor dentro, meu amor. Coloquei minha vida no pen drive. Minha sala não é mais de visitas, só tristeza de televisão. E meu coração finge, a todo custo, ser normal no mundo mercado onde sou apenas pré-juízo.

Com vontade louca de voar, dormi desertos de sonhos adulterados. Corri para o Caravelle, encontrei o saguão do aeroporto prendendo a ingenuidade dos adeuses. Andei pela tarde: o céu estava claro, o mundo estava lindo, eu era feliz. Vou guardar tudo para o dia em que acordar triste.

Aqui tudo me desconhece e me parece estranho. Algo se perdeu entre concreto, insensatez e abandono. Excluídos urbanos deliram esquecidos. Escombros humanos fumaçam nesse mundo de masmorra. Um dia, na solidão das coisas, todos terão companhia da solidão das máquinas. Como dói em mim atravessar o vazio, assim meio saraiva.

A Rua 7 de Setembro tinha cheiro de cinema: as amendoeiras sabiam disso. A cidade perdeu o rumo. Era verde e agora tem mais de cinquenta tons de cinza. Isola velhos e dá-lhes crachás de trânsito livre. Cerca praças e chama crianças de delinquentes.

A estação antiga vive desbotada. Edifícios carcomem horizontes. A luz elétrica desconhece como ficou quem gostava de contemplar vagalumes. E quase ninguém escuta o canto dissonante dos passarinhos nos postes. Entre ruínas, seguimos tristes, olhando para trás.

Vivemos em um tempo quadrado, feito o relógio invisível dos shoppings, mas o tempo não está no relógio e o sol insiste em clarear um novo dia. Minha alma está inquieta. Na cidade prostituída, vejo deus brincando de poesia.

Diante dos escombros, meu silêncio prepara uma crônica inútil. Vou para a rua, bebo luz, vejo um índio perdido na Frei Serafim, de óculos ray ban e calça jeans. Um índio tapuia, quem sabe poty,  perdido na margem da margem.

Me aproprio do verbo bárbaro e aprendiz de Paulo Tabatinga como um anjo torto do Mafuá devora poemas sórdidos e telas partidas. Saiba o leitor: a cinco graus do equador e em nenhum lugar se lê um poeta em linhas retas. Na cidade sitiada, ele sai às ruas e grita debaixo do sol e da noite surda para acordar quem não morreu.