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quarta-feira, 9 de maio de 2012

tão teresina, que dói / cineas santos


Ao poeta Paulo Machado

______Era um tempo sem colheita / mas havia a crença:/ viver não doía tanto. Bem que poderia ter sido assim; não foi. Numa manhã de cristal, dessas que só acontecem em Teresina, fui literalmente despejado na Praça Saraiva. Era maio de 65. Nos bolsos, dezoito cruzeiros, uma carta de recomendação, que se revelaria inútil, e um endereço de um quase-parente que jamais procurei. Nos olhos, a poeira da estrada e o espanto diante do novo. No corpo inteiro, o medo latente.

______De cara, três surpresas. A primeira, preocupante: a quantidade de carros trafegando nas ruas.. Carecia tomar tento pra não voltar para a aldeia convertido em notícia ruim. A segunda, estimulante: a abundância (taí a palavra adequada!) de mulheres por toda parte. De onde eu vinha, só se via algo parecido no dia da procissão do Padroeiro. A terceira, elucidativa: o Parnaíba. O risco inexpressivo dos manuais de geografia, na verdade, era uma veia aberta, generosa, encharcando de vida a terra, os bichos e a gente do Piauí.

______Depois de zanzar por pensões ordinárias, atraquei na UPES (hoje, CCEP) onde já amontoavam outro náufragos. A casa poderia acomodar, com desconforto, dez pessoas. Éramos oitenta! Normalmente, faltava água e não havia um único banheiro, o que na verdade não fazia tanta falta, já que também não havia o que comer. "Deus só dá o frio..."

______Desbravar a cidade era um desafio. Na P2, as mulheres, como animais em exposição, circulavam graciosamente. Os homens, mãos no bolso para disfarçar, conferiam, aferiam, faziam propostas. No coreto, a bandinha da PM atacava de dobrados e marchinas, "programa de velho". Na parte alta, recrutas bolinavam curicas. Na Paissandu, a noite nunca envelhecia. Estrela, Amambay, Fascinação: boleros, varizes, cerveja e gonorréia. Eh, Antônio Leiteiro!

        No Clube dos Diários, a fina flor da burguesia embalava-se ao som do Barbosa Show Bossa em "tertúlias", onde havia um pouco de tudo: namoros, conchavos, negócios, jogatina. Como um cão de guarda, Marcelino conferia o pedigree de cada novo sócio e escorraçava os indesejáveis. E eu comendo com a testa.

______No Carnaúba, homens e ratos disputavam o mesmo espaço, com ligeira vantagem para estes que, na condição de provadores, beliscavam tudo sem pagar nada. No Flutuante, meninos entanguidos e piabas elétricas disputavam migalhas, sob o olhar complacente das lavadeiras seminuas. 

          Nos programas de calouros, Ruy - o primeiro cabeludo da cidade - fazia paródias geniais: "Garota de Timon nunca teve vez / Nem que seja bonita / Nem que fale inglês / Lá é tudo tinindo / E quem governa é o padre Delfino". Valdenir, com voz chorosa, cantava "Maria Helena", sempre "a pedidos". Nos saraus familiares, Silzinho e Assis Davys cantavam "Perfídia" com sotaque caribenho.

______Nos embalos jovens, Brasinhas, Metralhas, Sambrasa arrepiavam. Luz e cor: calça boca de sino, bota calhambeque, rum com coca-cola, minisaia de napa, milk-shake. Nas mãos afoitas e nervosas, passeavam inicentes baseados. "Me segura que eu vou dar um troço!"

 ______Nas emissoras de rádio, "o mundo em ondas sonoras". A. Tito Filho vertia cultura pelos poros; Ary Scherlock esbanjava glamour; Figueiredo fustigava os desafetos (todo mundo) com o seu Almanaquinho do Ar; Roque Moreira comandava o Seu Gosto na Berlinda; Mariquinha e Maricota estilavam veneno; Al Lebre enchia o saco de meio mundo com seu chocalho madrugador; Deoclécio Dantas e Carlos Augusto vergastavam políticos e delinquentes, e Dom Avelar, com sua autoridade de pastor, apacentava o rebanho com a "Oração por um dia feliz". Tudo tão Teresina!

______No Theatro 4 de Setembro, rolava tudo: Maciste, Tarzã, ídios, caubóis, tapas e beijos. No carnaval, realizavam-se os concorridos bailes promovidos pela Prefeitura, com direito a tombos no piso inclinado. Na Semana Santa, a exibição da indefectível "Tragédia do Gólgota" encenada por Santana e Silva. Nas página de O Dia, Fabrício Arêa Leão escrevia crônicas laudatórias em aramaico, enquanto Dona Elvira atiçava a "fogueira das vaidades" dos novos-ricos. Eh, cidade amada!

______No Lindolfo Monteiro, Gringo, Vilmar, Evandro e Sima agitavam a galera, enquanto Carlos Said desancava os "energúmenos" em linguagem tão pomposa, que muitos se sentiam lisonjeados. Mas o melhor mesmo era ofender a mãe do juiz, sabendo que ele estava ouvindo tudo. Te segura, Braz!

______E tão envolvido estava, que nem me dei conta de que a cidade crescia, inchava; cercada de favelas, prenhe de cursinhos, panificadoras, motéis, templos evangélicos, casa lotéricas, carros importados, mendigos, telefones celulares e o escambau... E aqui estou eu, bestamente, amando essa pobre cidade transitória, como se fosse a mais importante do mundo. E é!


cineas santos
campo formoso, caracol - pi / 1948
as despesas do envelhecer
teresina: corisco, 2001


Reflexão
Nenhuma cidade é a mesma para dois olhares diferentes, menos ainda quando se trata de Teresina, cidade marcada por violentos contrastes. A sede do novo faz da capital do Piauí uma “cidade transitória”, como bem acentuou Cineas Santos numa de suas crônicas.
Essa parece ter sido a preocupação do fotógrafo Paulo Tabatinga nas 20 fotografias que integram a exposição Luz e Sombra Sobre Teresina, na Oficina da Palavra, até o final do mês.  Com olhar aguçado e fina sensibilidade, o fotógrafo capta imagens que revelam a cidade provinciana sendo engolida pela “grande Teresina”, onde quintais são engolidos por supermercados e casarões transformados em estacionamento.  Mais que uma bela exposição, o trabalho de Tabatinga nos propõe uma reflexão sobre o destino da “cidade amada”.

Texto: Cineas Santos




Filme da Exposição:



Foto da Semana



Poemartemanhas

"REVELAÇÃO

Tão só,
A tua beleza fulgura entre todas
De longe escuto o teu nome
Calado dentro de mim
Como o seu palpitar
Que me afiança estar vivo
Pleno com a capacidade de amar-te.
Tão só,
O teu jeito, o teu riso
Entre as bocas adornadas de carmim
E tu dentro de mim
Como um órgão vital
Tu, a bela tão desigual.
Tão só,
Eu, que vou querer-te sempre
Como se afina, como se anima
A minha vida por já saber
Que esta será sempre a minha sina
Amar-te, tão distante de mim.

Naeno*comreservas"


Filosofando

Eu já nem lembro "pronde" mesmo que eu vou
Mas vou até o fim
                                  Chico Buarque




Haicai





Acontecendo em Teresina:

      Exposição fotográfica do fotógrafo Rogério Newton
      Local: Espaço Cultural São Francisco - Mafuá




Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei da proposta do blog. O negócio é que gente velha como eu - 66 - tem dificuldade de transitar por esses canais eletrônicos, arquivos em nuvens etc. Estou em busca do email do Cineas... gostei do ensaio fotográfio sobre THE, de Tabatinga.
Sou da "terra querida", embora geograficamente desgarrado (Salvador-Ba)- Ary Txay